Após 30 anos de fanzine, rock e vinho barato, a pajé dos caruanas encerra sua jornada mística pelas ruas de Belém em um desfecho histórico.
A mística das ruas: o adeus a Horizonte Zero
No universo dos quadrinhos independentes brasileiros, poucas obras carregam a aura de resistência e autenticidade como Horizonte Zero. Nascida no efervescente cenário de 1995, a obra sobreviveu a três décadas de transformações no mercado editorial, mantendo-se fiel à estética do “fanzine, rock e vinho barato”. O que começou como uma resposta ao horror urbano dos anos 90 agora alcança sua conclusão, consolidando o título como um pilar da cultura pop produzida na Amazônia.
A trama acompanha Janaína, a jovem pajé conhecida como a “ave dos caruanas”. Em sua edição final, ela precisa enfrentar a ameaça definitiva: um apocalipse provocado por um espírito antigo que põe à prova todo o seu conhecimento místico e sua força de vontade nas ruas de Belém.
Uma dança entre o imaginário e o asfalto

O roteiro de Marcelo Marat brilha ao conduzir o leitor por um passeio pelo universo mítico amazônida, mas sem o distanciamento bucólico que muitas vezes vemos no gênero. Marat bebe da fonte de gigantes como Alan Moore e Neil Gaiman para construir um horror urbano sólido, onde o imaginário não é algo distante, mas uma força viva que habita as esquinas.

Visualmente, a HQ é um deleite para os saudosistas e entusiastas do traço visceral. O desenho de Emmanuel Thomas, que assumiu o posto em 1998, entrega a essência da “velha escola”: hachuras carregadas, sombras profundas e aquela estética crua de páginas xerocadas que define a alma da produção independente.
A construção de Janaína é, talvez, o maior triunfo da obra. Com seus icônicos olhos verdes, ela é uma protagonista que detém o controle total de seu destino. Janaína ignora ordens e toma decisões baseadas em suas próprias convicções, apresentando um protagonismo feminino forte e independente muito antes de o tema se tornar um debate central na indústria.
O tom da obra é moldado pela ideia de “os pés na terra e na cabeça uma parabólica”. Inspirada pelo movimento Manguebeat e por autores locais como Walcyr Monteiro e Zeneida Lima, a HQ consegue modernizar o imaginário amazônico, transformando Belém em um palco vibrante e sombrio para o sobrenatural.
Janína não é apenas uma história; é uma influência seminal. Sua abordagem de “detetives do sobrenatural” abriu caminho para diversas obras posteriores na região. É impossível não traçar paralelos com sucessos contemporâneos como o anime filipino Trese ou a brasileira Iraúna do Olhar Âmbar (JBStudios) — ambas focadas em jovens místicas lidando com o oculto em centros urbanos.
• Pontos Fortes: O protagonismo feminino orgânico e a ambientação única, que retira o imaginário da floresta e o joga no caos da cidade, conferem à obra uma personalidade inigualável.
• Ponto Fraco: A falta de uma publicação comercial robusta. Como muitas joias do mercado independente, a saga de Janaína clama por uma republicação de luxo que a leve para as grandes livrarias, permitindo que novos leitores descubram seu valor histórico.
Horizonte Zero encerra um ciclo de 30 anos com a dignidade de quem nunca abandonou suas raízes. É uma leitura obrigatória para quem busca uma aventura mística através do desconhecido e para aqueles que desejam entender a evolução do quadrinho independente no Brasil. É uma obra para quem gosta de mistério, cultura regional e, acima de tudo, de uma boa história sobre ser dono do próprio caminho.




