A MÁQUINA QUE CLONA ESTILOS E EXTRAI VALOR
Enquanto milhões de usuários se divertem com filtros que transformam selfies em ilustrações sofisticadas no estilo Studio Ghibli ou Pixar, a tecnologia opera sobre um modelo que, segundo especialistas, ignora a autoria, desvaloriza o trabalho humano e impõe custos ambientais e éticos alarmantes. O debate não é mais sobre o potencial benéfico da IA (reconhecido em áreas como saúde e educação), mas sim sobre a conduta irregular das empresas que a desenvolvem, revelando um novo capítulo na disputa tecnopolítica global.
Um dos exemplos mais claros dessa capacidade de emulação de estilo e clonagem de valor simbólico é o projeto japonês Tezuka 2020.
O Case Tezuka 2020: Para gerar o mangá PHAEDO (ou Paidon), um programa de IA analisou 65 obras de Osamu Tezuka, o "Deus do Mangá," para emular seu estilo narrativo e ideias pessoais. Embora ex-assistentes de Tezuka tenham ajustado a arte e o roteiro final, a máquina realizou o brainstorming virtual e concebeu a trama básica. O teste de criação via IA foi considerado um sucesso, provando que a "criação, talvez a parte mais difícil" da produção de mangá, já pode ser trabalhada por máquinas.
O impacto é direto na força de trabalho: a capacidade de emular estilos levanta a possibilidade de surgimento de “novos quadrinhos” de gigantes falecidos, como Stan Lee ou Jack Kirby, sem o aval de quem os inspirou. Profissionais como a produtora cultural Sâmela Hidalgo afirmam que o uso dessas IAs desvaloriza a arte, pois elas se valem do trabalho artístico de outras pessoas sem permissão.
“Segundo Sâmela a IA afeta a diversidade cultural “Acreditamos que emular os traços artísticos é uma forma de esvaziamento da autoria e apaga contextos históricos, territórios, experiências vividas e posicionamentos políticos. Isso representa um risco direto à diversidade cultural, especialmente para produções periféricas, indígenas, ribeirinhas e todo tipo de população amazônida que historicamente já lutam por reconhecimento e espaço.”
“Pra nós, essa discussão também é ambiental. Os sistemas de IA generativa demandam enormes infraestruturas energéticas e hídricas que aprofundam desigualdades e pressionam territórios já explorados. Defender a criação autoral é também defender o direito ao território, à memória e à sustentabilidade. Não existe inovação ética se ela se sustenta na exploração da cultura, do trabalho e da natureza.”
O Custo Oculto: Água, Energia e Colonialismo Digital
A conduta das Big Techs no universo da IA generativa não revela apenas questões de PI, mas também um modelo de negócio ambientalmente insustentável e geopoliticamente opaco.
O Consumo hídrico como prova: diferente da percepção popular de que o digital é “imaterial ou limpo,” os modelos de IA de larga escala, para serem treinados e operados, exigem um consumo massivo de água para resfriar servidores e data centers. Uma pesquisa das universidades de Colorado Riverside e Texas Arlington revelou que o ChatGPT pode consumir até 500 ml de água para responder a um pequeno número de perguntas (entre 20 e 50), e o gasto é ainda maior na geração de imagens complexas.
“Servidores “Derretendo”: A febre de desenhos estilo animê gerados por IA nas redes sociais levou o dono do ChatGPT a reconhecer que os servidores estavam literalmente “derretendo” por conta da demanda crescente.
A Resistência da propriedade intelectual e a urgência da lei
Em face da clonagem narrativa e da extração de valor, a indústria criativa e os formuladores de políticas públicas começam a reagir com base em provas e documentos.
"Há um conformismo de que a IA já faz parte de nossas vidas, de modo que as facilidades de execução das tarefas são mais atraentes, considerando que há uma impessoalidade dos danos ambientais e éticos."
Amanda Modesto Doutora em Memória, História e Educação em Artes pelo PPGArtes UFPA
Amanda observa que a comunidade artística vivencia uma crise de consciência que é coletiva. “As pessoas compreendem a IA como uma inovação para as Artes, e para o cotidiano, de modo geral, por isso estão divididas entre a curiosidade de estudar as possibilidades dessa nova tecnologia e a percepção de que o uso da ferramenta provoca danos por falta de regularização”.
“De fato, a responsabilidade de uso, cabe às empresas que coordenam e operam as IA’s de forma irrestrita, mas isto só ocorre porque o capital tensiona nossos limites de aceitação dessas novas formas de exploração econômica”.
“Nosso papel, como educadores, artistas e até como seres sociais, é demonstrar como isto nos afeta e entrar em consenso sobre a necessidade urgente de cobrar responsabilidade ambiental e o respeito às produções artísticas. Do contrário, os danos serão tão severos que não sobrará vida útil no planeta ou tempo hábil para que as IA’s criem consciência e dominem nossa espécie, como projeta a ficção. Morreremos por crise ambiental antes que a primeira IA tenha a primeira crise existencial.”
Repúdio Oficial do MSP
A Maurício de Sousa Produções (MSP), um dos maiores licenciadores nacionais, emitiu uma declaração oficial repudiando o uso de IA para reproduzir imagens baseadas em seus personagens, enfatizando que qualquer elemento relacionado aos personagens está protegido por leis de direito autoral e propriedade intelectual.
A MSP Estúdios acompanha atentamente o debate que vem ganhando força nas redes sociais sobre o uso de ferramentas de inteligência artificial na criação de imagens e quadrinhos inspirados no universo da Turma da Mônica.
Temos ciência de que esse é um caminho sem volta: a IA é uma tecnologia poderosa, que se estabelece como uma aliada dos processos criativos em diversas frentes da indústria cultural.
Reconhecemos o valor da inteligência artificial como ferramenta de experimentação e inovação, mas reforçamos que ela deve atuar como apoio, e não como substituição, à criação artística. Quando tenta reproduzir o traço da Turma da Mônica, a IA apenas ecoa, de forma limitada, uma linguagem visual única, construída ao longo de décadas pelos artistas da MSP Estúdios. Mais do que um estilo, esse traço carrega narrativas, emoções e a sensibilidade humana — algo que nenhum algoritmo consegue replicar por completo.
A MSP Estúdios reforça que o uso de qualquer elemento relacionado aos personagens está protegido por leis de direito autoral e propriedade intelectual. Não autorizamos a criação de conteúdos que violem esses direitos, nem admitimos associações com discursos de ódio, desinformação ou práticas que contrariem os valores da empresa. Há mais de 60 anos, defendemos a ética e o compromisso com a cultura, e agiremos sempre que esses princípios forem desrespeitados.
Seguimos comprometidos com o desenvolvimento tecnológico e artístico do nosso setor, dialogando com novas possibilidades, mas sempre com responsabilidade e respeito à arte, ao público e ao legado construído por nossos artistas.Nota da MSP Estúdios
"Acredito que o rádio pode contribuir promovendo debate sobre este assunto por meio de ferramentas jornalísticas e radiofônicas: entrevistas, reportagens, programas temáticos de variadas durações, inclusive nos intervalos da programação, quando é possível inserir conteúdo institucional e de caráter educativo, no caso das emissoras públicas. Acho que a Inteligência Artificial, hoje, é um assunto de conteúdo inesgotável, pois os seus mecanismos, certamente, evoluirão cada vez mais, e as obras ficcionais, como espelho da realidade, sempre vão gerar, acerca da atualidade, temas infindáveis para serem debatidos."
Arthur Castro Radialista
O PL 2338/2023: No campo legal, o Brasil avançou com a aprovação do Projeto de Lei (PL) 2338/2023 no Senado, que propõe a regulamentação da IA e busca proteger os direitos fundamentais do ser humano.
Assim como um imóvel ou um automóvel, uma obra artística pertence ao seu autor, que detém os direitos de uso, gozo e disposição. O grande problema surge quando a inteligência artificial se apropria desse fruto da inventividade humana para gerar novos conteúdos baseados em teorias ou estilos alheios. Segundo Barradas, isso configura um dano real: “uma afronta, uma agressão contra o direito autoral“.
A jurisprudência brasileira já começa a se formar para lidar com essas irregularidades e com a responsabilidade sobre as impropriedades geradas pela IA, incluindo a disseminação de fake news. O especialista enfatiza que existe uma obrigação de checagem para quem utiliza essas ferramentas, garantindo que não se transmita mentiras ou se utilize conteúdo alheio indevidamente.
IA como Ferramenta, não como Autor
Embora a IA seja “extremamente eficaz” para o levantamento de dados estatísticos e compilação de informações rápidas, o professor alerta para a necessidade de parsimônia e prudência. Criar conteúdo original é algo completamente diferente de compilar dados, e a tecnologia não pode servir de salvo-conduto para o uso indevido da propriedade intelectual.
Atualmente, o Brasil se adapta a essa nova realidade sob o rigor da Lei de Proteção aos Direitos Autorais, enquanto aguarda legislações mais específicas. No fim do dia, a lição é clara: a tecnologia deve servir para ampliar as capacidades humanas, mas nunca para substituir o direito fundamental de quem concebeu a ideia original.A inteligência artificial na cultura pop é como um potente amplificador: ela pode espalhar a música a volumes inéditos, mas se não houver um compositor humano criando a melodia, o que resta é apenas um ruído sintético e sem alma.
Emerson Coe
Editor
Emerson Coe
Editor
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- Email:contato@hqpop.com.br
Kleberson Santos
Jornalista
Kleberson Santos
Jornalista

"O Norte em Quadrinhos é contrário, ética e legalmente, ao uso de obras e artes no treinamento de sistemas de IA generativa sem consentimento, transparência e remuneração justa. O modelo atual de IA se baseia na apropriação do trabalho de artistas e autores sem retorno econômico ou reconhecimento, o que representa uma violação dos direitos criativos."
Sâmela Hidalgo Comunicadora e Produtora Cultural do Norte em Quadrinhos