Leonardo Dressant: o marajoara que transformou o imaginário amazônico em HQs cheias de humor, mistério e identidade.
De Pitiú e Xibé — os urubus mais carismáticos do Ver-o-Peso — à sombria A Batalha das Sombras, Leonardo Dressant construiu uma carreira que une crítica social, imaginação e amor pela Amazônia. Natural de Breves, na Ilha do Marajó, o quadrinista, escritor e analista de sistemas vem se destacando como uma das vozes mais autênticas da produção independente paraense. Nesta entrevista exclusiva ao HQPOP, Dressant fala sobre o nascimento de suas criações, o equilíbrio entre razão e emoção em seu processo criativo, a presença do folclore em suas histórias e o papel do humor como ferramenta de reflexão.

HQPOP: Sua tira mais conhecida, Pitiú e Xibé, iniciada em 2011, usa dois urubus que vivem no mercado do Ver-o-Peso para discutir temas como meio ambiente, saúde e educação. Como você equilibra o humor e o entretenimento dos quadrinhos com a necessidade de abordar críticas sociais tão presentes no cotidiano paraense?
Leonardo Dressant: Desde o início, minha intenção com Pitiú e Xibé foi usar o humor como uma ponte para falar de temas importantes. O riso tem o poder de desarmar as pessoas, e isso ajuda a fazer com que elas reflitam sobre assuntos sérios sem sentirem uma imposição, pois isso talvez criasse o efeito contrário do que eu pretendia abordar. Os dois urubus são personagens que vivem a realidade do Ver-o-Peso, um espaço cheio de vida, contrastes e histórias. Então, ao mesmo tempo em que eu brinco com o cotidiano, também trago uma crítica social leve, que nasce da observação do que está ao redor.

HQPOP: Pitiú e Xibé nasceu após um momento pessoal marcante — uma recomendação médica para que você se dedicasse a algo prazeroso, como desenhar, e uma cena inusitada entre uma garça e um urubu. Esse início “terapêutico” influenciou sua forma de trabalhar com quadrinhos? Você encara a arte também como uma forma de catarse ou autoconhecimento?
Leonardo Dressant: Sem dúvida. Essa recomendação médica mudou minha vida. Eu estava num momento difícil, e o desenho apareceu como uma espécie de cura. Comecei a fazer tirinhas sem pretensão, só para me distrair, e acabei descobrindo um caminho inteiro de expressão e propósito. A arte, pra mim, é uma forma de colocar pra fora o que está preso, de entender o mundo e a mim mesmo. Cada HQ, cada personagem carrega um pouco das minhas próprias buscas e transformações.
HQPOP: Em Bruxinha Kéké, seu livro, você usa o lúdico para falar sobre escolhas e consequências, com uma protagonista que não está ligada diretamente ao imaginário amazônico. O que motivou essa opção por elementos mágicos universais — como bruxas e fadas — e de que forma esse projeto dialoga com sua missão de valorizar a cultura amazônica?
Leonardo Dressant: Essa história foi criada para minha sobrinha, quando ela tinha apenas 5 anos. Eminha ideia era mostrar que é possível dialogar com o universo mágico de forma mais ampla, sem deixar de lado a essência amazônica. A Bruxinha Kéké fala sobre escolhas e amadurecimento, temas universais que toda criança — e até adulto — vive. Acredito que, mesmo quando não uso diretamente personagens do nosso folclore, a Amazônia está sempre presente, seja no modo como conto as histórias, nas cores, no ambiente ou na forma de ver o mundo.

HQPOP: Em O Livro Secreto da Matinta, você reuniu “causos” contados pela própria Matinta, e planeja expandir o projeto com histórias sobre outros seres da Amazônia, como o Curupira. Considerando o potencial do folclore como entretenimento, você enxerga espaço para levar essas figuras míticas para outras mídias, como séries animadas ou produções audiovisuais?
Leonardo Dressant: Com certeza. O folclore amazônico é um universo riquíssimo, cheio de personagens e tramas que têm tudo para funcionar em várias mídias. Eu acredito muito no potencial de transformar essas histórias em séries animadas, filmes, jogos… O público está cada vez mais interessado em narrativas autênticas e cheias de identidade cultural. E a Amazônia tem um imaginário tão vasto que daria pra criar um “multiverso amazônico” inteiro. Eu adoraria ver os meus roteiros sobre a Matinta, o Curupira ou o Mapinguari ganhando vida em animações, com o mesmo respeito e carinho que os descrevo nos meus livros e HQs.


HQPOP: Seu novo livro A Batalha das Sombras combina suspense com as narrativas orais da Amazônia e apresenta personagens encantados da região. Como surgiu a ideia dessa história e de que forma ela dialoga com sua proposta de valorizar a cultura amazônica dentro de tramas contemporâneas?
Leonardo Dressant: A Batalha das Sombras nasceu da vontade de unir dois mundos que sempre me fascinaram: o mistério e o imaginário amazônico. Eu queria contar uma história de suspense, mas que tivesse raízes nas histórias dos ribeirinhas e nos encantados da floresta. A trama fala de conflitos internos e externos, da luta entre luz e escuridão — tanto no sentido simbólico quanto espiritual. É uma forma de mostrar que as lendas da Amazônia continuam vivas e podem dialogar com o presente, com nossos medos e dilemas de hoje.
HQPOP: Você descreve seu processo criativo como “muito pessoal”, e diz que ideias podem surgir de situações do dia a dia, como uma cena vista de dentro de um ônibus. Em uma rotina criativa que muitas vezes exige prazos e constância, como você equilibra essa inspiração espontânea com a necessidade de manter uma produção contínua de HQs e livros?
Leonardo Dressant: É um equilíbrio difícil, mas que aprendi a respeitar com o tempo. A inspiração pode vir a qualquer momento, seja de um gesto, de uma conversa ou de algo que vejo na rua – cansei de ver coisas interessantes pela janela do ônibus – mas nem sempre ela aparece quando eu quero. Então, desenvolvi o hábito de anotar tudo — ideias, frases, imagens. Mesmo quando não estou desenhando, estou alimentando esse processo. A parte técnica e os prazos entram depois, quase como uma segunda etapa.
HQPOP: Em setembro, você participou da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, que você chama de “uma vitrine para os quadrinistas nacionais”. Quais são suas expectativas para o evento e de que forma essa visibilidade pode ajudar a apresentar seus personagens para o grande público?
Leonardo Dressant: A Bienal é um espaço incrível, onde o quadrinho brasileiro ganha voz. Levar meus personagens amazônicos pra lá é uma forma de mostrar que o Brasil é feito de muitas realidades e muitas narrativas. Quero que o público conheça o Ver-o-Peso, o Marajó, as nossas histórias, nosso linguajar, por meio desses personagens. É uma chance de exibir o Norte para o restante do país e de mostrar que a Amazônia produz quadrinhos de altíssimo nível.

HQPOP: Desde que iniciou sua carreira como quadrinista profissional, em 2017, você já lançou três HQs. Você sente que o mercado de quadrinhos no Pará tem se fortalecido e criado mais oportunidades para artistas locais trabalharem em rede e alcançarem novos públicos?
Leonardo Dressant: Na verdade, desde 2017, lancei 6 hq’s. Nos últimos anos, o Pará tem revelado artistas incríveis e o público tem se aproximado mais das produções locais. Estamos criando uma rede de quadrinistas, ilustradores e escritores que se apoiam e trocam experiências. Ainda há desafios, principalmente de distribuição e visibilidade, mas o movimento está cada vez mais forte e unido.
HQPOP: Além de quadrinista e escritor, você atua como analista de sistemas — uma área que exige lógica e estrutura. De que maneira essa formação influencia (ou contrasta com) seu lado artístico e o desenvolvimento das narrativas fantásticas que você cria?
Leonardo Dressant: Minha primeira formação foi em Sistemas de Informação e posteriormente fiz outra faculdade, que foi a de produção multimídia, esta já com um pezinho na arte. À primeira vista, parece que são mundos opostos, mas na prática eles se complementam. A área de tecnologia me ensinou muito sobre planejamento, estrutura e resolução de problemas — coisas que aplico diretamente nas minhas histórias. Por outro lado, a arte me dá o respiro criativo que o mundo lógico nem sempre permite. Acho que viver entre esses dois universos me ajuda a equilibrar razão e emoção.
HQPOP: Na sua visão, o perfil do quadrinista brasileiro mudou nos últimos anos? Que transformações você percebe na forma como os artistas produzem, se conectam e alcançam o público hoje?
Leonardo Dressant: Mudou com certeza. Hoje os quadrinistas são também produtores, divulgadores e empreendedores do próprio trabalho. As redes sociais abriram caminhos que antes não existiam. Vejo artistas se apoiando, colaborando e experimentando formatos novos. O público também se tornou mais receptivo a histórias fora do eixo tradicional — há espaço para o regionalismo e o independente, por exemplo. Isso é uma revolução.
HQPOP: Você também participou do Circuito de Quadrinhos. Como foi essa experiência e o que ela representou para a sua trajetória como autor?
Leonardo Dressant: Foi uma experiência muito rica. O Circuito me deu a oportunidade de trocar ideias com outros artistas da região amazônica, aprender novas técnicas e entender melhor o cenário nortista dos quadrinhos. Essas trocas são fundamentais pra gente continuar evoluindo. Cada evento assim me faz lembrar por que escolhi contar histórias: porque elas conectam pessoas.
HQPOP: Para encerrar: qual mensagem você gostaria de deixar para os leitores e para quem acompanha seu trabalho?
Leonardo Dressant: Que nunca deixem de acreditar na força das nossas histórias. Elas são trapiches que conectam pessoas, culturas e gerações. E pra quem sonha em criar, desenhar ou escrever, eu diria: comece, mesmo que seja tardiamente. A arte tem o poder de transformar, e foi ela que me transformou.

