dezembro 3, 2025
Literatura

Viagem no país da crônica: o Brasil visto do meio-fio

Ilustrada pela artista portuguesa Vera Tavares, a capa de Viagem no país da crônica brinca visualmente com a ideia do gênero como o “patinho feio” da literatura, conceito desafiado e celebrado por Humberto Werneck na obra. Foto/Emerson Coe

Humberto Werneck celebra 80 anos guiando o leitor pelos mestres da era de ouro, de Rubem Braga a Clarice Lispector, em uma “crônica ao quadrado”.

O “patinho feio” que virou cisne literário

Se existe alguém capaz de elevar a conversa de esquina à categoria de alta literatura, esse alguém é Humberto Werneck. Celebrando seus 80 anos, o jornalista e escritor mineiro entrega aos leitores Viagem no país da crônica (Tinta-da-China Brasil), uma obra que transcende a simples antologia,. Werneck, figura central do jornalismo cultural brasileiro e autor do indispensável O desatino da rapaziada, assume aqui o papel de curador e guia, conduzindo uma jornada afetiva e intelectual pela chamada “era de ouro” da crônica nacional,.

A estrutura do livro foge do convencional. Não se trata apenas de um agrupamento aleatório de textos, mas de um percurso temporal engenhoso. Werneck organiza a narrativa de janeiro a dezembro, espelhando também o ciclo da vida, da infância à morte,. O material base nasce de seu trabalho como editor do Portal da Crônica Brasileira (IMS), compilando textos e, crucialmente, comentando obras de gigantes como Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Clarice Lispector e Rubem Braga,. O resultado é um mosaico que cobre desde eventos triviais, como o gosto pelo uísque, até marcos históricos, como o golpe de 1964 e a construção de Brasília.

A metalinguagem da calçada A grande sacada de Werneck é a recusa em apenas “apresentar” os textos clássicos. Ele dialoga com eles. Guilherme Tauil, editor atual do Portal da Crônica, define com precisão o exercício realizado no livro: é “crônica sobre crônica, crônica ao quadrado”. Werneck utiliza sua prosa elegante e acessível para costurar anedotas e contextos, funcionando como uma ponte necessária entre a geração de 1950 e o leitor contemporâneo. A qualidade da escrita do autor mineiro brilha justamente por não tentar ofuscar os mestres que homenageia, mas por iluminá-los com humor e erudição leve.

Estilo e atmosfera O livro abraça a definição clássica de Antonio Candido sobre a crônica: uma literatura ao “rés do chão”. Werneck defende que a pressa do jornalismo, longe de ser um defeito, imprime frescor e autenticidade ao texto. A atmosfera da obra é a de um bate-papo despretensioso no meio-fio, onde a erudição não veste fraque, mas chinelos confortáveis. Essa abordagem torna a leitura fluida, ideal tanto para iniciados quanto para neófitos no gênero.

Universo e personagens reais Os “personagens” desta narrativa são os próprios escritores. Werneck humaniza mitos literários através de curiosidades saborosas. Um ponto alto é a reconstrução do jogo de futebol nas areias de Copacabana em 1945, que reuniu em campo Vinicius de Moraes e Fernando Sabino. Com sua ironia fina, Werneck comenta que, naquela partida, “todo gol seria necessariamente um gol de letras”. Essa capacidade de transformar a história literária em causo é o maior trunfo da obra.

Pontos Fortes e Fracos O ponto forte reside na curadoria e na voz ativa de Werneck. Ele não é um observador passivo; ele intervém, atualiza fatos e levanta curiosidades, muitas vezes reproduzindo recortes de jornais com anotações dos próprios autores.

Como “ponto fraco” — se é que podemos chamar assim —, o formato híbrido pode frustrar quem busca uma antologia pura, com os textos originais na íntegra sem interrupções. A proposta aqui é a mediação; é ler Clarice com Werneck, e não apenas ler Clarice. Além disso, a insistência na metáfora da crônica como o “patinho feio” da literatura, embora ilustrada poeticamente na capa por Vera Tavares, é uma batalha que o próprio livro vence logo nas primeiras páginas, tornando a defesa do gênero quase redundante diante da qualidade do material apresentado.

Viagem no país da crônica é uma leitura farta e variada que fala do Brasil de “certo tempo” e do mundo em “qualquer tempo”. Humberto Werneck prova que a crônica, esse gênero anfíbio entre o jornalismo e a ficção, é a ferramenta mais precisa para entender a alma brasileira. O livro é ideal para amantes da língua portuguesa, estudantes de comunicação e qualquer pessoa disposta a sentar no meio-fio para ouvir uma boa história.

Avaliação: 4.5 de 5.

Editor
Ilustrador, cartunista e quadrinista com mais de 30 anos de carreira. Premiado internacionalmente, destaca‐se pela crítica ácida e humor irreverente. Agora, como editor do HQPOP, ele traduz a cultura pop com ousadia e criatividade.

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