dezembro 3, 2025
Quadrinhos

Os Donos da Terra: une ancestralidade e denúncia política

TRAÇO DE LUTA: Capa de Os donos da terra destaca a união entre a ancestralidade Tupinambá e a resistência política na Serra do Padeiro. Foto/Emerson Coe

Descubra como a HQ “Os donos da terra” desafia a história oficial. Uma leitura potente e necessária sobre a resistência Tupinambá, ancestralidade e direitos originários no Brasil.

Quando pensamos em quadrinhos, a cultura pop muitas vezes nos direciona para capas coloridas de super-heróis em collant salvando metrópoles fictícias. Mas e quando o herói é real, a ameaça é sistêmica e o cenário é o solo que pisamos? Os donos da terra chega para ocupar esse espaço com a força de um manifesto. Lançada pela Editora Elefante, a obra não pede licença para reescrever o imaginário nacional; ela arromba a porta da historiografia oficial com a urgência de quem luta pela própria existência. Esqueça o “era uma vez”: aqui, a história é conjugada no verbo presente.

A HQ reúne sete narrativas que mergulham no cotidiano e na memória do povo Tupinambá da Serra do Padeiro, no sul da Bahia. Longe de ser apenas um registro documental, a trama entrelaça episódios históricos — como a resistência do lendário Caboclo Marcellino nas primeiras décadas do século XX — com as recentes e intensas retomadas de terras iniciadas em 2004,. A obra expõe as estratégias de sobrevivência de uma comunidade que, cercada por fazendeiros, policiais e um sistema judiciário hostil, encontra força em sua ancestralidade para defender seu território.

O roteiro é fruto de uma colaboração poderosa entre a antropóloga Daniela Alarcon, o quadrinista Vitor Flynn e a liderança indígena Glicéria Tupinambá. Essa trinca de autores entrega uma “pungente denúncia” que foge do didatismo frio. A narrativa acerta em cheio ao desconstruir a retórica colonial de “descobrimento”, substituindo-a pela perspectiva indígena de invasão e resistência contínua. O texto não alivia: mostra como a intimidação, o roubo e o assassinato são ferramentas usadas contra os Tupinambá, mas contrapõe essa violência com a altivez de um povo que se recusa a baixar a cabeça,.

Foto/Emerson Coe

A arte de Vitor Flynn não serve apenas para ilustrar o texto; ela traduz a cosmologia Tupinambá. Há uma sensibilidade ímpar em como o traço captura a relação entre o corpo indígena e a natureza. Um dos momentos mais tocantes visualmente nasce da comparação feita por Glicéria entre a digital humana e os anéis do tronco de uma árvore, sugerindo que ambos compartilham a mesma origem e destino. Em contrapartida, as cenas que retratam a destruição ambiental — como micos-leões-dourados fugindo de moradas devastadas — evocam uma resposta emocional imediata, quase um luto pelo “fim do mundo dos encantados”.

Os “personagens” aqui são carne, osso e espírito. Temos figuras históricas como Caboclo Marcellino, que transcende a morte para virar um “encantado”, e líderes contemporâneos como o cacique Babau e a própria Glicéria. A construção foge do vitimismo. Mesmo diante de prisões arbitrárias e ameaças de morte, eles são retratados como guerreiros orgulhosos: “Tupinambá não é pra morar em favela […] Tupinambá é guerreiro!”, diz Babau em um dos trechos mais vibrantes. Glicéria, coautora, traz uma voz íntima e feminina, realizando o sonho de sua mãe de ver as histórias da família impressas no papel.

Foto/Emerson Coe

A Serra do Padeiro é apresentada não como uma propriedade privada nos moldes capitalistas, mas como uma morada sagrada guiada pelos Encantados. O tema central é a disputa entre duas visões de mundo: a da posse predatória versus a do pertencimento espiritual. A HQ deixa claro que a luta pela terra é, também, uma luta ecológica e espiritual, onde defender a floresta é defender os espíritos que nela habitam.

Em tempos de debates acalorados sobre o Marco Temporal e governos com posturas anti-indígenas,, Os donos da terra é um documento histórico instantâneo. A obra serve como ferramenta para “desfazer preconceitos”, mostrando que os povos originários não estão no passado, mas estão aqui, agora, e produzindo conhecimento.

Para quem curte o gênero de jornalismo em quadrinhos ou HQs documentais, a referência imediata é Xondaro (2016), obra anterior de Vitor Flynn sobre os Guarani Mbyá. Se em Xondaro Flynn já demonstrava habilidade em traduzir realidades indígenas, em Os donos da terra a colaboração direta com Glicéria Tupinambá eleva a autenticidade da narrativa a um novo patamar, criando uma polifonia de vozes raramente vista no mercado editorial brasileiro.

Pontos Fortes:

    ◦ Autoria Indígena: A presença de Glicéria Tupinambá como coautora garante um “lugar de fala” legítimo e emocionante.

    ◦ Relevância Política: A obra dialoga diretamente com o noticiário atual, denunciando a paralisação de demarcações e a violência no campo.

    ◦ Profundidade Espiritual: A abordagem sobre os “Encantados” enriquece a leitura, tirando-a do campo puramente materialista.

Pontos Fracos:

    ◦ Densidade: Por ser fragmentada em sete histórias que misturam tempos diferentes, a leitura pode exigir um pouco mais de atenção de leitores acostumados a narrativas lineares simples.

    ◦ Carga Emocional: É uma leitura densa e por vezes dolorosa, que pode ser gatilho para quem busca escapismo puro, dado o realismo das denúncias de violência e genocídio.

Os donos da terra é uma obra não apenas para fãs de quadrinhos, mas para qualquer brasileiro que deseje entender o país além dos livros didáticos tradicionais. É uma HQ que incomoda, emociona e convoca. Ao fechar o livro, fica a certeza de que as árvores e os Tupinambá compartilham a mesma raiz e a mesma resistência.

Recomendação: Leitura essencial para fãs de Maus ou Persépolis, estudantes de humanidades e qualquer pessoa interessada na verdadeira história do Brasil.

Avaliação: 5 de 5.

Editor
Ilustrador, cartunista e quadrinista com mais de 30 anos de carreira. Premiado internacionalmente, destaca‐se pela crítica ácida e humor irreverente. Agora, como editor do HQPOP, ele traduz a cultura pop com ousadia e criatividade.

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